ARTIGO DE OPINIÃO
Olhares que não enxergam: o paradoxo do reconhecimento na Guiné-Bissau. A Guiné-Bissau é um país marcado pela sua história de resistência e pela memória de homens e mulheres que dignificaram a nação. No entanto, o que outrara nos orgulhava parece já não ter o mesmo valor ou respeito.
O reconhecimento público concedido recentemente ao jovem músico, Mc Tchabaco - intérprete de um estilo musical denominado Batucada - reacendeu inquietações sobre prioridades e interesses do Estado guineense. Estaria esse gesto representando o início de um movimento de reconhecimento estatal da cultura e dos talentos nacionais, ou tratar-se-ia de uma estratégia de cooptação político-eleitoral de figuras de destaque da música popular? Quais são os princípios e objetivos que fundamentam esse apoio? Existem razões, e não poucas, para comemorar esse reconhecimento, visto que o Estado guineense tem estado aquém do esperado na promoção da indústria cultural e criativa, apesar da sua relevância para a diversificação económica, a geração de emprego para os jovens e a projeção internacional da cultura guineense. Contudo, não se deve perder de vista o contexto e os atores envolvidos nesse reconhecimento - afinal, nenhuma criança nasce sem mãe.
Faz-se necessário refletir sobre o alcance desse reconhecimento e sobre os critérios que orientam tais escolhas. Por que o Estado autoriza certos artistas e ignora outros que, igualmente, projetam o nome da Guiné-Bissau além-fronteiras? O Ministério da Cultura, Juventude e Desportos tutela todas as modalidades desportivas no país e está ciente das representações dignas e conquistas alcançadas pelos(as) atletas de luta livre da Guiné-Bissau. O que tem feito, de fato, para considerar esses(as) atletas? Basta registrar nomes como Taciana Lima, Augusto Midana, Diamantino Yuna Fafé, Bacar N'dum e Caetano Sá, atletas que conquistaram e ainda estão conquistando medalhas de ouro, prata e bronze em competições internacionais, mas que, ainda assim, enfrentam dificuldades e falta de apoio institucional e do Estado guineense - ou seja, nunca são reconhecidos. Não se trata de desmerecer o talento individual nem de negar o papel da música como expressão cultural e voz do povo. O paradoxo torna-se ainda mais evidente ao observar que muitos músicos talentosos com conteúdos musicais denunciam problemas estruturais, como a precariedade da educação, a crise da saúde, a fome e a fragilidade da justiça - são frequentemente silenciados, perseguidos ou simplesmente ignorados pelo poder político.
O Estado parece selecionar quem merece ser aplaudido e quem deve ser invisibilizado, de acordo com conveniências que extrapolam a esfera cultural. Reconhecer e apoiar a cultura é, sem dúvida, uma medida necessária. No entanto, esse gesto não pode ser isolado nem descolado das urgências nacionais. A valorização do talento artístico precisa caminhar lado a lado com investimentos consistentes em educação, saúde, justiça e combate à fome - pilares essenciais para o desenvolvimento do país. Apoiar um estilo musical que movimenta ambientes festivos pode ter impacto simbólico, mas de nada adianta se o mesmo Estado negligenciar áreas específicas para a sobrevivência e dignidade da população, sobretudo nas zonas rurais, onde a carência é mais aguda.
Repito, não se trata de criticar o jovem músico que, com mérito, recebeu reconhecimento. Trata-se de empreender a próxima indagação: até que ponto as prioridades do Estado atendem às reais necessidades da sociedade guineense? Apoiar a cultura é importante, mas é preciso lembrar que o talento só floresce quando acompanhado por políticas públicas sólidas. A verdadeira marca de uma nação não está apenas nos seus festejos, mas, sobretudo, na capacidade de garantir educação de qualidade, saúde acessível, justiça eficaz e alimentação digna para o seu povo. Nossa crítica não é, portanto, contra indivíduos, mas contra a lógica seletiva e desigual de reconhecimento.
A Guiné-Bissau precisa reaprender o olhar para si mesmo com olhos que se enxerguem além da superfície, para que o orgulho nacional não seja apenas memória do passado, mas um horizonte possível de futuro.
Por Mestrando, Wilson Biaguê
BRAZIL RIO GRANDE DE SUL RD , 19 de setembro de 2025
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